No momento em que deixei o ventre de minha mãe e meus minúsculos olhos se abriram para este mundo, já haviam se passado mais de dois mil e quinhentos anos desde que você, meu Senhor, fechou seus olhos externos e compassivos temporariamente. Nunca o conheci pessoalmente – e nisso fui infeliz. Contudo, tive a grande sorte de vislumbrar não apenas a glória do meu Senhor, mas também a genialidade de sua ilustre progênie.
Talvez agora estejamos testemunhando o início do fim de seu reinado nesta Terra – o gradual apagar de sua luz-guia e o endurecimento dos corações dos habitantes da Terra que antes o consideravam tão querido, bem como aqueles que são como você. A rica abundância e o cuidado e a compaixão presentes em cada palavra que você proferiu me causam arrepios. Meus olhos se enchem de lágrimas de admiração por seu exemplo. Vindo de alguém cujo coração é frio e cuja cabeça está dominada pelo orgulho, isso diz muito.
Enquanto caminho por uma floresta tropical canadense de grandes cedros, ao longo das margens de um lago turquesa brilhante, os raios do mesmo sol que dois mil e quinhentos anos atrás aqueceram sua pele atingem a superfície da água e me deslumbram.
Seu caminho, o caminho que você traçou para nós, nos diz como viver nesta Terra, como apenas apreciar uma gota de orvalho, como simplesmente estar em uma forte rajada de vento, como estar plenamente com o sabor do chá – como levar a vida até nosso último suspiro. Mas nunca foi sua intenção parar por aí. Você tinha um interesse mútuo em nosso despertar que o levou a nos conduzir a uma verdade mais elevada. Você planejou e conspirou até que cada palavra que passou por seus lábios tivesse sido calculada para nos atrair e levar à compreensão perfeita dessa verdade.
Seu coração continha apenas um desejo: que todos nós víssemos a verdade. Ao longo dos anos, eu, estúpido, covarde, mas com amplo mérito, bebi suas palavras de alquimia. Fascinado por seguidores dos seguidores de seus próprios seguidores, também me tornei um seguidor. Alguns daqueles que eu seguia tinham cabeças raspadas e brilhantes e seguravam tigelas de mendicância, outros usavam dreadlocks e outros ainda viviam no mundo como chefes de família.
Escrevo estas palavras para celebrar a alegria de ser encantado por você. E escrevo para mim, para mais ninguém. Não ouso pensar além de “mim”. Mas quem sabe? Talvez minhas histórias provoquem uma centelha de inspiração em outras pessoas.
No final dos anos 1970, segui um homem de cabelos longos que detinha uma linhagem de dois mil e quinhentos anos que chamamos de “sussurrar-no-ouvido”. Essa linhagem ininterrupta contém inúmeros meios de nos despertar para a verdade e fazer com que esse jogo aparentemente interminável, inútil e sem sentido chegue ao fim. Meu mestre, o homem de cabelos longos, louvava um método mais do que qualquer outro: o caminho do andarilho. Então ele recomendou que eu considerasse a ideia de me tornar um andarilho.
Ansioso por ver o mundo e com um desejo apaixonado de evitar todas as responsabilidades, a ideia era estimulante. Eu poderia de fato ser um andarilho? Imediatamente implorei para ouvir mais. Quando meu mestre apresentou todas as informações de que eu precisava para fazer minha escolha, porém, percebi que no contexto da projeção que chamo de “esta vida” a disciplina do vagar estava além de mim. Para ser um verdadeiro andarilho, eu teria que prometer nunca mais voltar a nenhuma das minhas zonas de conforto habituais, nunca pedir informações e partir assim que um lugar se tornasse vagamente familiar. Se eu tivesse a mais remota sensação de segurança ou conforto, se as pessoas começassem a me reconhecer, se meu rosto fosse visto pela segunda vez por amigos ou estranhos, eu teria de partir imediatamente e seguir vagando.
Meu coração apertou.
Ainda hoje, enquanto sigo por uma trilha selvagem bem conhecida no Canadá, tenho medo de me perder e de me desviar do caminho. Por mais que siga com cuidado o caminho que escolhi – um caminho do qual já sinto saudades – sei muito bem que a minha jornada deve chegar ao fim. O medo lançou sua sombra sobre a minha aventura e sobre o meu caminho para a libertação.
Meu coração aperta quando me lembro do momento em que percebi que a melhor de todas as vidas, a vida de um andarilho, estava além da minha capacidade. Por semanas passei muitas e muitas noites me revirando na cama, o que me fez sentir miserável e desapontado.
Meu mestre de cabelos longos viu o que se passava.
“Por que você está tão desanimado?”, perguntou.
Eu contei a ele.
“Você não tem motivo para ficar remoendo isso”, ele falou, “você apenas ainda não tem todas as informações necessárias. E… ”, ele acrescentou, “você ainda não percebeu que nosso Senhor é a personificação da sabedoria e da compaixão”.
“Como assim?” , perguntei.
“Nestes tempos sombrios, neste kaliyuga”, respondeu ele, “amar, admirar e adorar a própria ideia de ser um andarilho, bem como aspirar e ansiar poder viver a vida de um andarilho, é o mesmo que realmente fazê-lo.”
Eu olhei profundamente em seus olhos. Aquela não era uma conversa encorajadora sem sentido. Ele não estava apenas despejando chavões para me confortar. Cada palavra havia sido proposital.
Isso tudo aconteceu há muito tempo. Até mesmo meu mestre de cabelos longos já nos deixou. Milagrosamente, porém, ainda estou aqui e ainda estou respirando. Ainda estou aqui para testemunhar a remodelação de nossas vidas neste planeta. Nossa metamorfose.
É surpreendente que eu tenha vivido tanto. Nasci no ano em que o primeiro ser humano foi lançado ao espaço, numa época em que nos comunicávamos por meio de cartas enviadas pelo correio. Hoje em dia, comunico-me com meus semelhantes em salas de conferências virtuais – eu ia escrever “onde entro com um clique do mouse”, mas me disseram que agora até a tecnologia do mouse é considerada desatualizada.
Nasci em uma época em que as pessoas viajavam menos e os países do mundo eram mais autossuficientes. Já vivi muito para testemunhar os efeitos da globalização: posso comer tâmaras importadas do Oriente Médio e experimentar os efeitos do vírus em constante evolução que está devastando a raça humana.
Ao longo desta vida, ouvi os líderes do nosso mundo defendendo da boca para fora conceitos como emancipação, liberdade, justiça e igualdade. Ainda estou vivo, ainda respiro e ainda ouço as mesmas promessas vazias.
Mesmo assim, em meio a todo esse viver e respirar, a todo esse embotamento e distração, ainda lembro um pouco daquilo que meu mestre me disse. Graças à bênção do meu Senhor e às bênçãos daquele homem de cabelos longos, ainda lembro de suas histórias, seus ensinamentos e seu conselho oportuno. E ainda consigo lembrar como foi crescer sob seu olhar terno e vigilante.
Enquanto respiro o perfume desses grandes cedros, a memória vívida de arrancar folhas de zimbro perfumadas para oferendas rituais me visita. Do nascer ao pôr do sol, os longos e brilhantes dias da minha infância foram cheios de risos e brincadeiras. Lembro-me de sentar com amigos que podiam, com um rápido olhar, casualmente virar o pão achatado em uma fogueira ou capturar a mais venenosa das cobras com as próprias mãos. E quando nossos mestres descobriram o que eles andavam fazendo, levaram o que pareceu ser a maior bronca do século por se distraírem com seus poderes mágicos triviais.
Ao longo da adolescência, minha exposição ao mundo do racionalismo, ciência, matemática e raciocínio cresceu e me ensinou a sentir vergonha das minhas próprias memórias de magia e encantamento. Tanto é verdade que sempre evitei falar sobre esse aspecto de minha vida para não ser colocado lado a lado com os terraplanistas. Mas agora, décadas depois, parece-me que nós, seres humanos, recebemos doses de raciocínio e ciência mais do que suficientes. O que nos falta é bondade, humildade e magia. Quem, hoje em dia, sente ternura pela bondade? Muitos pais ensinam aos filhos que bondade é fraqueza. Quantos de nós reagem com bondade à gentileza dos outros? Sem coragem de abraçar a verdadeira humildade, ensinamos nossos filhos a serem arrogantes e ousados, porque isso lhes dará vantagem nas negociações. O pior de tudo é que nos falta até uma admiração rudimentar pela magia.
Políticos, da Casa Branca ao Kremlin, passando pela 10 Downing Street, de Zhongnanhai ao prédio da Dieta Nacional em Tóquio, estão cegos para a verdade nua e crua de que fariam mais bem para a humanidade e para os polos em derretimento do nosso mundo se pudessem encontrar em si mesmos um pouco de bondade, humildade e alguma admiração pela magia. Ainda assim, embora essas três coisas tenham sido extraídas de nós até a última gota, ainda lembro como, motivado por sabedoria e compaixão, meu mestre nos deu com alegria o ensinamento profundo e esclarecedor sobre a natureza paradoxal deste mundo. Minha memória do momento em que ele nos apresentou a uma deidade mágica e bem-aventurada, uma deidade da “união de tudo e nada” – uma deidade não maculada por nome ou gênero – está gravada em meu coração.
Lembro-me de como estava ansioso para conhecer essa deidade e o sentimento de urgência com que implorei ao meu mestre para que ele me apresentasse a ela. Como ele não respondeu imediatamente, o importunei sem piedade.
“Onde está essa deidade?” perguntei de novo e de novo. “Como faço para encontrar a deidade?”.
Por fim, ele falou.
“Encontrar a deidade não poderia ser mais simples”, disse ele. “Mas essa mesma simplicidade pode ser seu maior desafio.”
Quando meu mestre viu meus olhos brilhantes, ele deve ter percebido a determinação obstinada que espreitava por trás de meu entusiasmo, porque ele disse em seguida: “Nosso Senhor falou sobre inúmeras maneiras de encontrar a deidade. Mas isso deve acontecer de forma espontânea, até mesmo escandalosa. E você deve estar livre de todas as inibições. Mesmo assim, quando acontece, parece bastante comum e nada especial.
Como assim? Eu estava confuso
Como se tivesse lido a minha mente, meu mestre fez uma pequena pausa e disse:
“É a sua sede por algo especial que o impede de ver a glória e o esplendor da simplicidade. Feche os olhos e ela está lá; abra os olhos e ela está lá. Cada vez que você pisca, a deidade ri. Você pode estar bebendo uma xícara de chá e, no momento em que leva a xícara aos lábios, alguém grita: “Diga-me …!”, muito alto e forte. Naquele exato momento, antes mesmo da pergunta “Dizer o quê?” se formar na sua mente, a deidade está sentada, de pé ou dançando diante de você. Ou pode ser que lhe digam para correr o mais rápido possível da árvore até ao arbusto, mas no meio do caminho você fica confuso e chocado ao ouvir a ordem de dar meia-volta e retornar. E, outra vez, a deidade simplesmente está lá”.
Pelo que meu mestre disse, ficou claro que para seres como eu, que só podem funcionar dentro do contexto de gênero, tempo e espaço, a mais sublime das deidades estava muito além do nosso alcance. Mas, como sempre, aquele homem de cabelos longos tinha o tesouro inesgotável de métodos hábeis e compassivos do nosso Senhor na ponta da língua. “A deidade que você deseja conhecer não é azul”, ele me disse, “nem é branca, amarela, vermelha ou verde; no entanto, a deidade é azul, branca, amarela, vermelha e verde. A deidade não é masculina ou feminina, mas “ele” pode ser “ela” e “ela” pode ser “ele”. A deidade não é nem um nem dois; ainda assim, em um momento a deidade é o Senhor seguido por um grande séquito e, no momento seguinte, a deidade é o grande séquito que segue o Senhor. Algo tão trivial quanto um nome não tem poder para desfigurar ou manchar a deidade; no entanto, a deidade é adornada com um bilhão de nomes. Se você pensar na deidade, ele ou ela estará lá ou não, e sua presença ou ausência são a fonte das mesmas bênçãos”.
“A deidade que você deseja conhecer não é azul”, ele me disse, “nem é branca, amarela, vermelha ou verde; no entanto, a deidade é azul, branca, amarela, vermelha e verde. A deidade não é masculina ou feminina, mas “ele” pode ser “ela” e “ela” pode ser “ele”. A deidade não é nem um nem dois; ainda assim, em um momento a deidade é o Senhor seguido por um grande séquito e, no momento seguinte, a deidade é o grande séquito que segue o Senhor. Algo tão trivial quanto um nome não tem poder para desfigurar ou manchar a deidade; no entanto, a deidade é adornada com um bilhão de nomes. Se você pensar na deidade, ele ou ela estará lá ou não, e sua presença ou ausência são a fonte das mesmas bênçãos”.
Quando disse ao meu mestre que desejava praticar um método e respeitosamente insisti para que me ensinasse um, ele disse que eu poderia atirar uma flor para o ar ou recitar tantos dos bilhões de nomes daquela que não tem nome quantos pudesse lembrar. Tamanha era a compaixão de meu mestre que, para facilitar a minha relação com a deidade, ele rebaixou a mais alta das técnicas e descreveu algumas das suas características mais humanas – por exemplo, mil olhos ou braços.
Sempre ganancioso e ambicioso, perguntei: “Qual é a melhor e mais rápida maneira de encontrar essa deidade e de realmente vê-lo ou vê-la?”
Sem deixar de lado meu pedido, meu mestre, com compaixão inabalável, respondeu: “Se você realmente leva a sério a ideia de encontrar essa deidade, existem vários métodos à sua escolha. Vou lhe falar sobre um em particular, mas se você decidir aplicar este método, devo avisá-lo que é muito arriscado”.
Jovem e orgulhoso, tive certeza de que estaria à altura do desafio. Eu também estava ciente de não haver cumprido o pedido anterior do meu mestre. Incapaz, como eu era, de viver a vida de um andarilho, agora ansiava por ter sucesso em pelo menos uma das tarefas recomendadas por ele.
“Que tipo de risco?” perguntei.
“Sua própria vida. Você tem direito a três tentativas, mas, se falhar, sua vida será encurtada drasticamente.”
Suas palavras realmente me fizeram pensar. Meu gosto pela vida era forte. Havia tantas coisas que eu queria fazer, tantos livros que queria ler, tantos amigos com quem sair e tantos lugares para explorar, desde a costa do Oceano Pacífico até o pico do Machu Pichu. Eu poderia arriscar tudo isso? Revirei essas ideias em minha mente por vários dias.
Por fim, meu mestre me disse que, se eu estava falando sério sobre ser apresentado à deidade sem nome, teríamos de fazê-lo na próxima noite sem lua, que por acaso era no dia seguinte.
Eu não sabia o que dizer. Sim, meu apreço pelo caminho aumentava a cada dia. Sim, fui convencido por cada palavra proferida por aquele que fechou os olhos há dois mil e quinhentos anos. Sim, os ensinamentos que foram transmitidos ao longo dos séculos aos meus próprios mestres faziam todo sentido. Mas eu poderia arriscar minha própria vida?
No caso, acabei nunca tomando uma decisão clara. Quando chegou a hora de dar minha resposta ao mestre, uma fração de segundo antes de tentar, com os lábios trêmulos, formar as palavras “Sim, estou falando sério”, ainda não tinha ideia do que dizer. Mas era tarde demais, meu mestre já se preparava para me apresentar à deidade.
Enquanto tocava o sino e espalhava flores, ele disse: “A visão por trás de seu desejo de se familiarizar com a deidade deve ser o desejo de despertar, de éons do mais profundo sono, todas as criaturas capazes de cognição. Você deve, portanto, embarcar em uma missão que o deixará um pouco mais perto de cumprir essa visão”.
“Seria este o preâmbulo de mais uma cerimônia extravagante durante a qual seremos enterrados sob guirlandas de calêndulas?” perguntei-me, lembrando de como meu nariz coça quando o ar fica impregnado com o incenso de sândalo. Ou eu estaria prestes a ser enviado para um retiro solitário “longe da multidão enlouquecedoura”, por dias, semanas, meses, até anos? Ou ainda, será que eu teria de construir um templo ou uma torre no topo de uma colina ou na margem de um rio?
Não era nenhuma dessas coisas. Minha missão irrecusável era propor casamento a sete mulheres em nome da deidade. E todas as sete deveriam aceitar antes da próxima noite sem lua, não dali trinta dias.
As regras daquela missão eram curiosas. Eu não tinha permissão para abordar mulheres que soubessem sobre minha missão ou sobre a deidade. Se eu fizesse isso, disse meu mestre, eu não estaria enganando a deidade, mas a mim mesmo. As noivas que eu abordasse deveriam pertencer a todos os grupos etários. Se apenas uma de minha lista de sete recusasse, eu deveria começar tudo de novo. Mas eu só poderia recomeçar três vezes. Se todas as três tentativas falhassem, minha vida seria encurtada em sete anos, sete meses, sete semanas, sete dias, sete horas, sete minutos, sete segundos – e sete éons. A única pergunta que eu poderia fazer a cada candidata era: “Você concorda em ser a noiva do mais exaltado, sincero, confiável, poderoso, majestoso e belo de todos os seres?”. E eu poderia lhe assegurar que, uma vez casada com seu sublime pretendente, ela estaria livre para se casar e se divorciar de tantos seres mortais quanto desejasse, porque, uma vez casada com a deidade, ela nunca se afastaria um centímetro sequer da morada dele.
Escutei atentamente as palavras do meu mestre, mas de alguma forma não conseguia registrar seu significado. Embora estivesse animado e emocionado com a minha missão, deixei de avaliar suas consequências.
“Agora que você ouviu essas instruções, não há como voltar atrás”, disse meu mestre que mais uma vez havia lido minha mente. “Você deve começar agora mesmo e se dedicar de todo o coração a cumprir sua missão.”
“Se você não for bem sucedido”, acrescentou ele com um grande sorriso, “tudo bem. Afinal, mesmo sete éons não seriam uma grande perda se considerarmos o quanto a tentativa o deixará mais próximo da deidade.”
Foi então que finalmente me dei conta do fato de que eu estava jogando com mais do que sete anos da minha vida preciosa Até aquele momento, eu havia deixado de lado a advertência do meu mestre, confundindo-a com algum tipo de metáfora. Mas quando ele olhou para mim com um sorriso encorajador, vi em seus olhos exatamente a mesma expressão que ele tinha quando me contou sobre a vida de andarilho. Ele estava falando sério. O preço do fracasso seria maior do que sete anos desta vida.
Ao iniciar o primeiro estágio de minha missão, senti orgulho de ser capaz de tentar. Mas também fiquei apavorado com a perspectiva de perder nem que fossem apenas sete dias desta vida preciosa. E me preocupava que pudesse me tornar um pária. O que meus amigos e vizinhos pensariam de mim – especialmente as mulheres que eu abordasse? E se todos pensassem que eu estava louco? E se o estigma da loucura me seguisse pelo resto da vida?
Minha mente começou a acelerar. Por onde devo começar? Haveria um jeito fácil de fazer isso rapidamente, com habilidade e sem muitos danos ou consequências indesejáveis? E a minha posição social? O que quer que acontecesse, a vida continuaria ― e então como eu poderia proteger minha imagem, meu bom nome e minhas amizades? Eu inventava planos e esquemas dia e noite. Minha mente estava em um turbilhão tão grande que até meus sonhos fervilhavam de ideias e estratégias.
Como eu sabia que não teria coragem de abordar a primeira mulher que encontrasse, decidi começar por aquelas cuja origem cultural proporcionava uma aposta segura Então, fiz uma lista de todas as mulheres que conhecia que tinham a mente aberta, eram acessíveis, corajosas e selvagens.
Lutei para formular um plano que cumprisse minha missão e protegesse minha reputação. Minha lista cuidadosamente compilada de candidatas em potencial ficava suja e borrada à medida que eu adicionava nomes e logo os apagava repetidamente. Essas mulheres eram minhas amigas e me parecia de certa forma injusto ser obrigado a julgá-las. Essa mulher seria suficientemente aberta? Aquela mulher suficientemente corajosa? Uma conhecida fofoqueira poderia ser levada em consideração? Eu poderia correr o risco de fazer a pergunta a uma mulher que só falava mal de mim o tempo todo? E se os pais dessa mulher reagissem mal e viessem a público? E se o marido daquela mulher, geralmente tão bem-humorado, viesse atrás de mim?
Então, algo extraordinário aconteceu. Inesperadamente, lembrei que meu mestre havia me contado sobre o método mais poderoso para se resolver problemas aparentemente intratáveis – uma técnica que foi ensinada originalmente pelo Senhor que andou descalço e pediu esmolas num dia e se sentou com toda a indumentária real em um trono cravejado de joias no outro, a quem atribuo o pensamento que surgiu em minha mente. A chave para resolver o problema mais complicado, disse meu mestre, é implorar, suplicar e orar à deidade, pedindo por sua ajuda e bênçãos pessoais. Então eu fiz exatamente isso. Em segundos, uma pequena dose de “indiferença” foi introduzida em minha mente e, aos poucos, toda a minha ansiedade sobre confortos futuros e posição social começou a se dissipar.
Uma após a outra, encontrei todas as mulheres da minha lista. Uma após a outra, encontrei todas as mulheres da minha lista. Muitas vezes, meu papel de intermediário parecia mais complicado e estranho do que se eu realmente estivesse me apresentando como um pretendente tímido, e não como a deidade. Dei presentes a algumas mulheres e falei bobagens por horas com outras, na esperança de estabelecer um relacionamento. Mas, no fim, nenhuma das minhas maquinações e conspirações foram necessárias. Tudo o que eu precisava fazer era engolir meu orgulho, medo do ridículo e ansiedade quanto às possíveis consequências caso minhas ações recaíssem não apenas sobre mim, mas também sobre meus amigos, família, linhagem e até mesmo meu legado, e fazer a pergunta. Nada mais.
No período de mais ou menos vinte dias, concluí minha tarefa. E seu sucesso só pode ser atribuído ao meu mestre e à deidade – o mestre que é a deidade, a deidade que é o mestre.
Dias depois, descobri que algumas das noivas da deidade eram extremamente bem educadas. Elas haviam estudado disciplinas intelectuais modernas, eram capazes de pensar racionalmente, eram instruídas e intelectualmente curiosas No entanto, contrariando toda a razão, mesmo a candidata mais improvável não hesitou em ir além de uma decisão racional e responder “sim” à proposta mais bizarra que jamais receberia.
Até hoje permanece comigo a memória do dia do casamento delas. Ainda posso ver as guirlandas de calêndulas e sentir o aroma de sândalo no ar. E ainda posso ver a mão de uma mulher segurando com delicadeza a mãozinha da estátua que representava a deidade, enquanto a imagem era ungida com leite e mel.
Embora como praticante vajrayana seja meu dever enxergar todas as mulheres como deidades, minha estima por essas sete mulheres é ainda mais elevada do que a que tenho por todas as outras mulheres, e nutro por elas o mesmo temor e reverência que espero sentir quando olhar para a esposa – a consorte – do ser divino.
Eu também percebi algo. Não ter um objetivo pessoal equivale a bondade, e quando a bondade é combinada com a humildade, a porta para todos os tipos de magia se abre.
– Dzongsar Jamyang Khyentse